ShareThis

18 fevereiro 2011

A Palavra de Deus e as palavras dos homens


Livro: História Sagrada
Autor: Irmãos Maristas
Editora: Editora do Brasil
Ano: 1926
Páginas: 364

Para todo aventureiro que se coloca diante do desafio de ler a Bíblia inteira, é natural sentir por antecipação uma sensação de fadiga similar a alpinistas diante do Monte Everest. 

E não é à toa esse cansaço antecipado. 

Eu já devo ter lido a Bíblia umas quatro vezes, e sei como é monótono e cansativo em muitos trechos. Principalmente nas intermináveis genealogias (judeus adoram essas coisas!) e nos detalhes minuciosos de cada construção ou empreendimento feito por eles.

É aquela coisa, você tem que ler sem perspectiva de prazos. Às vezes em uma sentada você lê várias páginas. Em outras tantas parece que tem sonífero nas letras e você passa dias para avançar dez páginas.

E assim vai.

De qualquer forma, assim como para todo muçulmano é imprescindível pelo menos uma vez na vida ir à Meca, acho que pelo menos uma vez na vida o cristão deve ler as Escrituras. Até porque é meio incoerente você dizer que acredita em um documento que não leu.

Já devo ter falado sobre isso umas tantas vezes neste blog, mas mesmo assim nunca é demais falar de novo. Durante toda a história da religião judaico/cristã estabeleceu-se a cultura de existir os textos sagrados e as pessoas sagradas que interpretam os textos sagrados para o rebanho não tão sagrado assim.

No filme Baby, Um Porquinho Atrapalhado, as ovelhas precisam de um cão pastor pelo simples fatos delas serem naturalmente tão idiotas e tapadas que precisam de alguém que grite com elas para que elas entendam a direção que devem tomar. Ao que parece, isto se torna um reflexo bem cabível na relação que transcende séculos entre os pastores e as ovelhas nos currais religiosos.

Na igreja que eu costumo ir aos domingos (quando definitivamente não tenho nada melhor pra fazer) há uns tempos tem ido um senhor esquizofrênico que senta no primeiro banco da primeira fileira. Este cara se tornou meu herói. 

Acontece que toda vez que o pastor ou outro convidado termina o sermão ele levanta com seu bloquinho de anotações e durante uns três minutos ele comenta o sermão. Diz o que gostou e o que não concordou, terminando sempre com uma ou duas perguntas.

Já pensou se sempre fosse assim? Se a cada fim de um sermão religioso houvesse espaço para que os membros e visitantes coloquem suas impressões, como qualquer palestra que se preze em qualquer universidade? Creio que iriam diminuir drasticamente o número de bobagens que se falaria em nome de Deus em muitos lugares.

Diante disso passei semanas pensando nesta proposta: - E se agora as ovelhas falassem?

Aí resolvi fazer essa experiência. Juntei alguns amigos (religiosos e não religiosos) na casa de um amigo dizendo que ia ser um estudo bíblico. Li Gênesis capítulo 1 e simplesmente perguntei: - E aí, o que vocês acham deste texto?

Houve um silêncio constrangedor. Perfeitamente compreensível. Fiquei esperando alguns minutos e finalmente alguém perguntou: - Posso dizer o que eu acho mesmo? Sinceramente?

E daí o papo fluiu. Nada de um guru espiritualóide pensando pela gente. A interpretação era construída (ou não) de forma coletiva. O grupo debatia e tirava conclusões do texto. E se resolvia as diferenças de leitura no diálogo sem levar para o lado pessoal. E o grupo funciona até hoje e tenho aprendido muito lendo a bíblia com a soma da minha perspectiva com as perspectivas dos demais.

Claro que você vai dizer: - Beleza, mas isso não deixa de ser mais uma forma do homem interpretar!

Concordo com você. Não dá para fugir disso.

Porém, com isso tento colocar abaixo a pretensa sacralidade da interpretação.

Explico!

Hoje, como estou de bom humor vou ser legal com você. Vou concordar com você (há duras penas, confesso. Mas tudo vale em prol do bom entendimento) que a Bíblia Sagrada é a perfeita e inerrante palavra de Deus, divinamente inspirada e tal.

Tudo bem até aí? Então tá, vamos em frente.

Mesmo concordando com essa máxima da ortodoxia cristã, não me movo um centímetro sequer da percepção de que, apesar do texto ser Sagrado, o olhar sobre ele no decorrer da história nunca foi e nunca será perfeita e blindada a falhas.

Essa é minha grande questão. Eu posso até não querer aqui, só para polemizar (e bem que eu poderia!) relativizar a Verdade. Agora, a leitura desta Verdade eu relativizo sim. Pegue qualquer livro sobre história do cristianismo e você verá uma tonelada de páginas de coisas bizarras que se fizeram em nome de um olhar x ou y sobre os textos sagrados.

Hoje então nem se fala! Quem assiste tv aberta que o diga.

Recuso-me a ver pastores e padres como sacerdotes que extraem interpretações e insights inquestionáveis sobre o que eles entendem ser A Verdade. Minha perspectiva hoje é vê-los como homens que, assim como eu e você, são falhos. E encaro o que eles falam como meras possibilidades, que certamente compararei com minha óptica em torno do mesmo texto e assim poderei formar algo parecido com uma opinião.

Diante de toda esta falácia você deve estar pensando:

- Quando, por Zeus, esse imbecil vai falar do livro!?

Agora mesmo Ó paciente leitor!

 São Marcelino Champagnat (1789 - 1840)
Fundador do Instituto dos Irmãos Maristas em 1817

Escrito em 1926 pelos Irmãos Maristas, a História Sagrada consegue o louvável feito de resumir toda, eu disse TODA história do cristianismo. De Gênesis a Apocalipse, passando pela Igreja Primitiva e Medieval até começo do século XX. Aí você deve imaginar que seja um livro da grossura do volume único de O Senhor dos Anéis. Mas que nada, tudo isso é sintetizado em pouco mais de 350 páginas.

Até aí tudo bem. Para quem tem preguiça de ler a bíblia e infindáveis volumes da História da Igreja esta é, sem dúvida, uma ótima pedida.

Porém, o que me chamou atenção neste livro são os comentários dos padres nos rodapés das páginas. Encontrei cada coisa bizarra! Lembrando que se trata da visão de padres ortodoxos do começo do século XX. Então a visão medieval ainda era preponderante.

Por exemplo. A bíblia, em Gênesis, conta que Noé, após o dilúvio, resolve plantar uma vinha. E do vinho produzido pela vinha ele se embriaga.

Ele tinha três filhos: Sem, Cam e Jafét.

Cam encontra o pai bêbado e nu na tenda e vai aos irmãos para contar a mazela em que o pai se metera. Tipo: - Caralho pessoal, acabei de ver o pai melado lá na tenda, nuzão ó! Haueahaueahauea!

Então os irmãos com toda reverência, virando o rosto para não ver a bunda murcha e branca do pai, o cobre com um manto. Noé quando acorda, com uma ressaca dos diabos, soube da molecagem de Cam, fica puto da vida e lança uma maldição sobre o filho dizendo:

- Para sempre servirás como escravo à teus irmãos!

Abaixo segue o comentário dos padres:

Os filhos de Sem fixaram-se na Ásia e deram, mais tarde, o povo de Deus; os descendentes de Jafet povoaram a Europa e os de Cam espalharam-se principalmente na África.

Perceberam a sutileza teológica para legitimar a escravidão histórica dos africanos?

Muitas outras notas curiosas como essa permeiam todo este livro. Lembrando que é uma cartilha catequética do começo do século XX, então na época não era nenhuma novidade este tipo de pensamento.

Gosto da bíblia pelo fato dela, em si mesma, ser uma fonte que dá margem para várias possibilidades de leituras e interpretações. Assim ela certamente irá revelar muito sobre o caráter de quem a lê e interpreta.

Falo isso por mim mesmo. Nas minhas leituras tenho muita dificuldade em separar o Deus que é do Deus que eu quero que Ele seja.

E você que acredita em Deus deve ser um pouco assim também. A partir do momento que você começa uma afirmação do tipo - Pois para mim Deus é assim e assim e assado! você também esta construindo uma imagem de Deus muito particular a você mesmo.

Então quem é Deus de fato?

Não sei! Sinceramente.

E se alguém disser que sabe fique com o pé bem atrás com essa pessoa.

Bem, se é que Ele existe, acredito que mesmo assim trata-se de alguém que nunca a percepção humana vai conseguir abarcar em sua totalidade.

E a bíblia? As igrejas? E as religiões?

Bem, são possibilidades, apenas possibilidades.

Mas... E o Amor? E Jesus?

É, quem sabe aí consigamos chegar a algum lugar.

Quem sabe.

Os fariseus, ouvindo que ele fechara a boca dos saduceus, reuniram-se em grupo e um deles (a fim de pô-lo à prova) perguntou-lhe: Mestre, qual é o maior mandamento da Lei? Ele respondeu: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo teu espírito. Esse é o maior e primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.
Mateus 22: 34-40

Vários religiosos preferem ter razão do que ter compaixão.
Karen Armstrong

Outras interessantes possibilidades:

- Um Sábado Qualquer: http://www.umsabadoqualquer.com/

- A Bíblia Com Limão e Gelo: http://bibliatwist.blogspot.com/

- Histórias Engraçadas da Bíblia (Youtube):

18 comentários:

Andreia Inoue disse...

olaaa!!
os seus post's sao sempre aulas.
Adorei esse em particupar por levantar questoes bem interessantes.E concordo que se apos o sermao, fosse deixado em aberto uns 10 a 15 minutos para os membros fazerem perguntas,com certeza muitos padres/pastores pensariam mil vezes antes de falar algumas asneiras.Preparariam um sermao muito mais coerente (alguns,nao todos,afinal existe muitos que sao otimos representantes de Deus).
Eu só li na integra o novo Testamento, adoro os livros que falam sobre Jesus.
E o Antigo realmente é muitoooo cansativo, as geologias sao verdadeiros soniferos,ahhaa.
um abracao.

Dagoberto Silva disse...

professor Facundo! o assunto lhe tocou, não foi? investimento em dissertação de boa qualidade, pouco material sobre o livro - exceto ao que tange as preocupações que aqui demonstrar ter. bom post, apesar de longo. gosto da sua escrita "solta" e humor. são ferramentas diferenciais.

forte abraço!

coisas do eu disse...

Mr. Georges,
li teu longo texto... apesar de minha preguiça toda de sábado...
acho mesmo que você poderia ter sido mais, digamos, sucinto pra dar o recado. sinceramente, não precisava da foto do padre (que parece com o João Inácio Jr.) nem do livro marista.

todo livro todo texto, como já se disse, é uma "obra aberta".

é uma grande pena que qualquer grupo que leia a Bíblia não o faça como muitas vozes, comunitariamente. e, como sabemos, leituras monocórdicas são mais frequentes do que gostaríamos.

P.S.: não precisa visitar nem comentar meu blog... tenho pensado em nossa última conversa... acho mesmo que vou "auto-destruí-lo".

Weslley Almeida disse...

Macho vei, gostei muito do texto.
Vi nele muitos questionamentos e posições minhas.
Mesmo te conhecendo, e sabendo dos seus caminhos teológicos, rola aquela sensação, tipo "ele também pensa assim, legal..."
Quando saímos da lógica do rebanho e nos tornamos a ovelha "negra", caminhamos por trilhas onde -talvez - esteja o verdadeiro pastor...
Sobre o livro em si, o detalhe apresentado é uma amostra dos pre-conceitos e racismos impregnados nos meios religiosos que devem (assim como em qualquer outra instância da sociedade) acabar.

Abração!

Natan de Sousa disse...

Cara, me canso dos seus posts gigantescos, mas os adoro... demorei três dias e quatro noites para terminá-lo (tudo bem, exagerei, mas foi quase isso). Mas vamos ao que interessa:

1. Não considerar a Bíblia como sagrada seria um passo interessante. Ou, pelo menos, considera-la sagrada tanto quanto "Crime e castigo", "Cem anos de solidão", ou "Histórias sagradas", dos irmãos maristas, p. ex. O problema da sacralidade é ficar em crise com coisas do tipo: "tenho que saber distinguir o Deus que é do Deus que eu quero que Ele seja". Não se iluda. O Deus da Bíblia é o Deus que alguém quis que fosse, Ele não é o Deus que é, nem será jamais.

2. A Bíblia (e suas diversas traduções) sofre do mesmo mal dos comentários dos padres no "Histórias sagradas". Lá tb há preconceitos. Diversos. Em muitos momentos a Bíblia é xenofóbica, homofóbica, machista... vc sabe disso. A beleza da Bíblia está, inclusive, nisso. A gente pode ler um negócio que Paulo falou sobre gays e dizer: "estão vendo, no tempo de Paulo e com a tradição religiosa de Paulo era assim que se pensava, hj, com os esclarecimentos que temos (temos a mais uns dois mil anos de revelação de Deus em relação ao tempo de Paulo), podemos dizer: homossexualidade não é pecado. Gays não vão pro inferno, quem deve ter ido pra lá é Paulo, que não gostava de sexo"... (rsrsrs).

3. Enfim, gosto da Bíblia, ela me diz muito sobre Deus, mas ela é a voz de diversos SERES HUMANOS falando sobre Deus. Deus nunca escreveu uma linha sequer. E, pra falar a verdade, a Bíblia não é nem nunca foi palavra de Deus. Até onde eu sei "a Palavra se fez carne" e não livro.

Espero ter enriquecido, ou, pelo menos, atrapalhado suas reflexões... Como diria Tom Zé: "eu tô te explicando pra te confundir / tô te confundindo pra te esclarecer"...

Um beijo, mona!

Anônimo disse...

legal é que o George, mesmo com sua visão nada ortodoxa, é um grande incentivador da leitura da Bíblia... George você é um iluminista teológico pós-moderno...

Realmente ler a Bíblia é perturbador, um prato cheio para religiosos "diet" de hoje, babacas em geral e um convite ao teste para críticos e metidos a entendidos, que nunca leram uma letra dela...

Todos sairão ganhando, talvez mais tolerantes uns com os outros, e o mundo também... As não-leituras e as desleituras é que matam, véi.

Anísia Neta ❀ disse...

George, muito bom ler seus textos irreverentes... A leitura é leve, como numa conversa... até parece que estava te ouvindo falar! Bom pra matar a saudade!!!
Bom... penso como vc que a Bíblia é sagrada mas tb comete sacrilégios...) Deus, (como Natan bem disse acima... é muito maior do que a Bíblia nos diz e do que a nossa religião prega.
"Fé em Deus e pé na tábua, pé em deus e fé na tábua!"

Diego Cosmo disse...

Bixo, esse livro é bacana! Mas creio que o livro mais massa dele é o "o livro mais mal-humorado da bíblia", vale a pena conferir.

O Anso é do tipo de pessoa que é inoxidável! já falei isso pra ele uhaua

Diego Cosmo disse...

http://www.blogger.com/comment.g?blogID=7507402160380641629&postID=3211567064198117859

Priscilla Acioly disse...

Gostei muito da postagem, apesar de eu só ter tido paciência para ler até o momento em que você apresenta o livro. Queria mesmo ter lido até o final, mas minha coluna já está ardendo e preciso ir esticar o corpo. Nossa, adorei o que você fez de reunir os amigos para bater um papo sobre a bílbia. Isso é algo que eu faria também. As pessoas precisam entender que a Bíblia não é uma mera história de Deus, antes, é a história dos homens (criados por Ele) e por isso perpassa por culturas, visões, cronologias diferentes o tempo todo. A gente enxerga muito isso quando começa a comparar as narrativas dos 4 evangelhos, rs.

Gostei daqui, abraços.

Pra. Cristina Rosa disse...

Você consegue prender a atenção das pessoas com esses textos kilométricos sem levar em conta que muitos bumbuns ficam doloridos de ficarem tanto tempo ansiosos para ver o desfecho da mensagem. Tu é esperto, garoto! Respeito suas opiniõe e valeu! Valeu conhecer seu blog. Abração!

Jacqueline disse...

george... admiro sua cabeça pensante, coisa difícil nos dias de hoje...rsss
bjssssssss

Otávio M. Silva disse...

OI,muito interessante seu blog, to passando aki pq vi vc é seguidora do blog do meu amigo, Mailson, e por isso quero convidar vc para dá uma olhada no meu blog http://otaviomsilva.blogspot.com/
desde Já agradeço, Forte abraço

PS; Sigo de volta

Hermes C. Fernandes disse...

Olá George!

Grata surpresa encontrar seu blog. Parabéns pela iniciativa e conteúdo do mesmo. Quero lhe encorajar a prosseguir.

Já estou seguindo!

Aproveito para lhe convidar a conhecer o meu blog, e se desejar também segui-lo, será uma honra.

www.hermesfernandes.com

Na paz e no amor de Deus!

Frido disse...

Adorei a historinha no final. Tão didática! Fiquei até com vontade de usar em alguma discussão de criacionismo!

Frido disse...

Muito bom essas historias engraçadas da biblia. achei todas no youtube. eu nao conhecia! to adorandoooooooo! me matando de rir sempre! obrigado por ter divulgado!

Thâmara Cristina disse...

Primeiramente, estou simplesmente emocionada e ri muito com o teu post sobre os Beatles, tirando a Playboy e os palavrões piores do que os da Dercy Gonçalves, lembrou minha infância totalmente. Também comecei ouvindo um vinil que achei na casa da minha vó, só que era da Rita Lee, mas acabei nem me tornando fã mesmo dela, acabei conhecendo Beatles, Nirvana e todos os outros que você falou por influência do meu tio e me apaixonei!! Muita emoção!

Sobre esse post, a frase "então quem é Deus de fato?" me chamou atenção. Estou em um momento da vida que me perguntei coisas por aí e além...

Enfim, vim dar um oi porque estou voltando com o Blog, vou escrever algumas coisas sobre algumas bandas também depois, aparece! Bjos!

Nice disse...

Na minha igreja temos celulas, reunioes nas casas dos irmaos durante a semana pra debater, discutir a mensagem de domingo =)
É legal. Aparece lá.
Ta muito tarde nao consigo comentar direito, mas achei muito legal oq ue vc falou sobre nós colocarmos a interpretação para outras pessoas, isso tira a responsabilidade de nós, o sacerdocio universal como diz a Biblia.Todos temos que ouvir a voz de Deus, reconhecer e seguir, de forma individual,e depois juntos de forma coletiva.